DICAS PARA POETAS – OS POEMAS NÃO NASCEM PRONTOS

DICAS PARA POETAS – OS POEMAS NÃO NASCEM PRONTOS

Em tempos em que enorme rapidez mal separa ideia, escrita e publicação, pode parecer ultrapassado o que vou dizer aqui. Pode parecer, mas não é.

Entre a emoção que faz nascer um poema – inicialmente na nebulosa região do pensamento, depois na transcrição desse sentimento no papel ou na tela do computador – até a efetiva publicação desses versos é necessário haver certo período de maturação durante o qual o poema seja revisitado, riscado, reescrito, burilado…

Se possível, o poema deve até ser esquecido por um tempo (às vezes um longo tempo) para que, longe da emoção que o fez nascer, o poeta tenha distanciamento suficiente para avaliar aquilo que escreveu.

Se depois de passado esse tempo os versos escritos não soarem pueris, nem ridículos, muito possivelmente valha a pena continuar a trabalhar neles: cortando palavras que estejam “sobrando” e, por isso, atrapalhando o ritmo; lendo em voz alta para perceber se outra palavra ficaria melhor no lugar de uma que não parece assim tão poética; eliminando grandes explicações, já que a linguagem poética, diferentemente da referencial, sugere mais que elucida, etc, etc.

Depois desse trabalho, o texto deve ser esquecido uma vez mais e uma vez mais revisto… até que, finalmente, nele apareça a emoção (aquela primeira) depurada, livre de palavras que não fazem falta, livre de tudo que não seja poesia.

O poeta é aquele que trabalha em seus versos dessa forma. “Trabalha”: cria, recria; escreve, reescreve; corta aqui, acrescenta ali, verifica extensão, ritmo, sonoridade… até que, finalmente, o poema diz apenas e exatamente o que é preciso dizer.

Há “poemas” que fizeram sucesso na internet e se transformaram em livros. Muitos deles não são propriamente poemas, mas apenas prosa fragmentada em versos. Fico feliz pelo sucesso desses jovens poetas e pelos leitores que angariaram: muitos certamente nunca haviam lido poesia alguma e foram conquistados para esse gênero por essas “poesias” nascidas no Facebook e no Instagram. A grande poesia, entretanto, é muito mais que as frases de autocompreensão que andam a publicar.

Emily Dickinson disse certa vez que reconhecia um grande poema quando, ao lê-lo, sentia todo seu corpo responder a ele, como se alguém lhe puxasse pelos cabelos. Estou lendo Cem sonetos de amor, de Pablo Neruda (pois um leitor aqui do blog me sugeriu que acrescentasse esses versos aos outros que selecionei para ler no outono) e ao ler esses sonetos compreendo exatamente o que Dickinson quis dizer. A verdadeira poesia arrepia, desperta como um tapa na cara, uma lufada de vento. Poesia assim, caro poeta, só trabalhando muito em seus versos para conseguir.

Eu não considero ter alcançado esse nível de excelência (quem dera!), muito pelo contrário. Sou muito mais crítica literária do que propriamente poetisa e muito melhor em reconhecer um poema bom, distinguindo-o daquele que não é, do que em escrever meus próprios poemas. O fato de ter trazido um poema meu para ilustrar o que acima vai dito é, única e exclusivamente, por possuir as etapas de evolução do poema e não por considerá-lo uma joia da literatura, compreende?

Escrevi há muitos anos o poeminha “Encontro marcado”. Como a maioria dos poemas, este foi fruto de uma emoção inspiradora, circunscrevendo-se naquela primeira etapa da construção de um poema que Fernando Pessoa chama de “o primeiro grau da poesia lírica, aquele em que o poeta, concentrado em seu sentimento, escreve sobre esse sentimento”.  Anos mais tarde, relendo-o, achei que não era de todo mal (embora não me agradasse inteiramente) e andei fazendo com que circulasse pela internet:

 

ENCONTRO MARCADO

 

Estarei esperando

até que estrelas últimas

se apaguem no céu.

Irás me encontrar

no lugar antigo

– bem ou mal combinado –

a encher-me de hera

(se o tempo correr demais)

vestida só de esperança.

 

 

Apesar de ter passado muito tempo entre sua criação e sua divulgação, eu não o revisitei nos anos todos que correram entre uma coisa e outra. Resultado: foi o fato de vê-lo online que me fez realmente enxergá-lo e, desse modo, repensá-lo, transformá-lo e deixá-lo assim:

 

ENCONTRO MARCADO

À espera

– vestida de hera

e de esperança.

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Mantive “espera” (“estarei esperando”), “hera” e “esperança” – palavras essenciais para preservar a essência do poema – mas cortei todo o resto que lembrava uma carta ou qualquer outro texto em prosa e distanciava o texto do seu propósito poético.

Não fiquei satisfeita, entretanto. O primeiro verso, com três sílabas métricas (à/es/pe), separava-se ritmicamente do verso que vinha a seguir, com cinco sílabas métricas: ves/ti/da/de/he (caso você não saiba, em poesia a contagem silábica só vai até a última silaba tônica do verso). Foi então que mexi nele mais uma vez e surgiu o poeminha atual:

 

 

Ao acrescentar o vocábulo “dança” ao primeiro verso, consegui deixá-lo com a mesma medida do verso seguinte: na/dan/ça/da es/pe – cinco sílabas métrica, o que garantiu sequência rítmica. Note que “da” e “es” formam uma única sílaba em obediência à declamação, pois quando lemos o poema (especialmente em voz alta) as duas sílabas se juntam formando uma só, processo que em poética se chama elisão. Para além disso, o acréscimo também ampliou o sentido do texto, sugerindo um possível encontro (frustrado) em um baile, além da ideia de que esperar indefinidamente é, de certa forma, “dançar” sem sair do lugar, perder, frustrar-se.

O poema, com ritmo e sonoridade equivalentes e agradáveis, pôde afinal ser definitivamente publicado (aqui). Meu erro? Ter feito circular um poema que ainda não me agradava… apenas porque estava escrito.

Parece-me ser esse mesmo o erro que tantos cometem hoje em dia. Na ânsia de publicar, acabam divulgando poemas que poderiam ser repensados, melhorados.

Por isso, se você também escreve (e, principalmente, se pretende publicar um livro), reescreva algumas vezes os seus versos… várias vezes… busque alternativas, construa… até que o poema fique realmente “redondo”, sem arestas – e possa ganhar o mundo!

 

Beijo&Carinho,

 

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Mais dicas para poetas: aqui, aqui, aqui e aqui..

Caso você precise de ajuda na construção de seu poema, não hesite em me escrever, pois minha área de atuação é justamente essa:

 

 

 

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24 thoughts on “DICAS PARA POETAS – OS POEMAS NÃO NASCEM PRONTOS”

    • Que bom que gostou, Ruthia! Tenho trabalhado assessorando poetas nesse sentido. É incrível como o poema pode melhorar quando você descarta palavras que só servem para torná-lo pesado e pouco poético. Obrigada pela leitura e comentário… Abraço!

  • Oi, Ju, bom dia,

    Que aula, parabéns!
    Acho que é muito comum relermos – com certo desapontamento – um texto que escrevemos. quase sempre vemos que ele podia ter sido melhor escrito, rsrs.
    Quando se trata de poemas o cuidado tem que ser muito maior, já que se trata de um texto que tem exigências próprias. Uma vez eu li que todos os grandes poetas eram também grandes escritores (de prosa), mas pouquíssimos grandes escritores conseguiam produzir bons poemas.

    Um beijo e um ótimo 2020 pra você!

  • E eu, bobinho que sou, pensando que nascessem
    feitos sim. Oh, senhores poetas. Oh, senhores dos
    versos que acalmam e das poesias que nos fazem
    sonhar.

    Beijos, senhora poeta. Beijos Jussara.

  • Olá Jussara que bom lhe ver por lá.
    Pois só a via no Instagram.
    Sua elegância poética é o ouro no fundo da bateia no fim do dia.
    Suas dicas são perfeitas e esta de poema nascer pronto é enganosa, pode
    o mote vir, mas haja trabalho para a obra final.
    Que bom lhe ver e saber bem.
    Meu terno abraço amiga
    Que Machado esteja sob controle nesta pandemia.

    • Obrigada, Toninho!
      Infelizmente há bastantes casos do covid-19 em Machado… Mas vamos nos distraindo deles com poesia!
      Obrigada pelo seu carinho, sim? Abraço!

  • Excelente exposição de como é tecida a grande poesia, Jussara!
    E contextualizado com as novas mídias e no que se tem observado nas redes.
    O poeta é isto mesmo: um grande lapidador. É como o crochê que você sabe bem: é preciso a quantidade exata de pontos. Se sobrarem, a toalha fica godê (godé). Como dizem no popular, 10% inspiração, 90% transpiração.
    Vejo jovens poetas promissores, mas que cometem erros crassos, inclusive de gramática, por pura falta de revisão. Têm boas ideias e alma poética, mas não fazem esse trabalho de artesão que você explica tão bem. O perigo é as pessoas perderem o interesse em nossos textos por termos perdido a oportunidade de causar uma primeira boa impressão.
    Sempre que alguém precisar, indicarei suas dicas. E a mim também foram de grande valia! Vou sempre reler!
    Fazia isso nos poucos que escrevo, mas não com tantos detalhes, consciência e domínio. Também não conhecia a frase de Dickinson.

    Forte abraço!
    Vanessa Rodrigues, voltando “na área” para relembrar os bons e velhos tempos de minasdemim!

    • Você deve imaginar como me sinto, Vanessa, quando me deparo com esses jovens e promissores poetas que cometem erros crassos. Vontade de me meter, de palpitar… mas você sabe como são difíceis os tempos que vivemos… o quanto as pessoas, julgando-se protegidas pela virtualidade do espaço, podem atacar quem pensa diferente delas… e sou muito sensível para entrar num bate-boca virtual com desconhecidos :/
      Adorei a comparação com o crochê!
      Obrigada pela sua leitura atenta e seu minucioso comentário. Grande abraço!

  • Oi, Jussara!
    Gestar as palavras de um poema é bastante trabalhoso, nem sempre é na primeira que se acerta. Eu gostei da primeira versão. Deu mais margem à imaginação. Ah, os links da postagem não funcionam.
    Beijus,

    • Oi, Luma. Eu acredito que a primeira versão tem mais verdade. A cada nova versão, ganham em arte (trabalho), mas perdem em veracidade.
      Obrigada pelo toque em relação aos links. Vou ver com meu TI.

  • Olá Jussara.
    Esta sua aula de poesia está ótima, aprendi algumas coisas com o seu texto.
    Já há muito tempo que não publica ou enganei-me e este post não é o mais recente?
    Bom fim de semana, amiga Jussara.
    Beijo.

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