A RELAÇÃO AUTOR-TEXTO-LEITOR

A RELAÇÃO AUTOR-TEXTO-LEITOR

Ter em mente que a leitura é uma troca entre quem escreve e quem lê, pode ajudá-lo(a) a entender melhor os textos que lê.

O autor não é 100% dono daquilo que escreve a não ser que nunca publique o que escreveu. Uma vez publicado, o texto adquire vida própria e se nutre das diferentes leituras que acerca dele são feitas. Assim, cada leitor é um pouco autor, também, pois contribui para a existência do texto com a visão que dele tem.

O sentido de um texto, portanto, é construído nesse diálogo, nessa interação autor-leitor.

Não é verdade, entretanto, que, assim sendo, todas as leituras são possíveis. O autor se utiliza de um vocabulário específico e estrutura suas frases de determinada maneira, de modo a conduzir o leitor a uma certa conclusão. O arranjo das palavras no texto, entretanto, pode suscitar um entendimento que escapa ao controle do autor e é nesse “vazio” do texto que o leitor penetra com sua interpretação, que nasce de suas experiências e conhecimento de mundo. Exemplifico com o poema abaixo:

 

 

O título do poema, em italiano, porque retirado de Dante, significa “No meio do caminho”. A primeira estrofe marca o momento do encontro de um casal, no meio do caminho (da vida). Os versos seguintes fazem referência à vida em comum, ao tempo em que viveram juntos e foram felizes. A terceira estrofe, por outro lado, registra o momento em que essa relação tem fim: “Hoje, segues de novo”. Nesta estrofe é interessante o quanto fica evidente a indiferença que a outra pessoa – a quem o eu-lírico (a voz que fala no poema) se dirige – demonstra em relação ao fim desse relacionamento de “longos anos”, ao passo que a estrofe final aponta a solidão e o desespero (“tremo”) do eu-lírico ao ser abandonado.

Considere, agora, as seguintes situações:

  • Depois de longos anos de vida em comum, a pessoa com quem o eu-lírico viveu decide pôr um fim à relação e vai embora.
  • A pessoa não decide ir embora. Ela morre.

 

 

 

 

E agora, qual é a leitura correta?

Aí é que está: não existe leitura “correta”, pois as duas são possíveis.

A favor da primeira está o verso “Hoje, segues de novo…”, pois a ideia de “seguir de novo” pode sugerir um envolvimento da vontade de quem quer partir e, por isso, nem se comove com a despedida.

É preciso considerar, no entanto, que por mais que uma pessoa decida partir, não se sai sem emoção de um envolvimento de tantos anos. A pessoa não se comove, nem chora (“Nem o pranto os teus olhos umedece”), embora o texto seja enfático: trata-se de um momento de “dor”: “Nem te comove a ‘dor’ da despedida”. O eu-lírico, por sua vez, não esconde o quanto sofre com a separação que, nos versos finais aparece como definitiva:

 

E eu, solitário, volto a face, e tremo,

Vendo o teu vulto que desaparece

Na extrema curva do caminho extremo.

 

Ora, não parece muita frieza por parte de quem se vai? Não parece definitiva demais essa partida? Não é sem razão que num só verso sejam usadas as expressões “extrema” e “extremo”, repetição que ocorre justamente para mostrar que não há volta… porque essa pessoa morreu.

“Seguir de novo”, nesta outra perspectiva, é apenas um eufemismo para a morte, e toda a frieza de quem parte, de acordo com a primeira leitura, se explica, consoante a segunda interpretação, como impossibilidade de se despedir, de se comover, de chorar.

A segunda leitura me parece mais profunda e abrangente, mas a primeira não pode simplesmente ser ignorada, pois ambas se baseiam no próprio texto.

Uma pessoa que nunca tenha experimentado a morte de alguém muito próximo, mas que tenha vivenciado uma separação, pode – baseada em suas próprias experiências – interpretar o texto de acordo com a primeira leitura sugerida. Outra, entretanto, que nunca tenha se separado de ninguém, ou que até tenha vivido isso, mas que tenha conhecido a dor de perder alguém amado, pode interpretar segundo a outra linda de entendimento.

Observe que “aquilo que o autor quis dizer” não é tão importante quanto aquilo que fica dito – no texto. O poeta morreu há cem anos, em 1918, mas o seu poema continua a conversar com o leitor de hoje. Nessa troca consiste a leitura.

Note, porém, que as interpretações que sugeri são possíveis de acordo com as pistas linguísticas fornecidas pelo próprio texto. Não estaria correto entender que a pessoa partiu para se encontrar com um amante ou para se tornar astronauta, pois nada no texto sugere isso. Não é verdadeira, portanto, conforme já assinalei acima, a lenda que afirma que toda interpretação é possível, pois há uma organicidade, uma lógica, um fio invisível que percorre todo o texto e que é preciso, como leitor, perseguir.

Obviamente, quantos mais textos tiver lido o leitor, quanto mais tiver percorrido o mundo, quanto mais tiver acumulado experiências na vida, mais hábil leitor será de uma infinidade de textos.

Na impossibilidade, porém, de viver todas as experiências possíveis e visitar todos os lugares do mundo, em épocas passadas e futuras, leia. É o melhor investimento (e o mais barato) que poderá fazer por você mesmo(a).

 

Beijo&Carinho,

 

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