PRECIPITAÇÃO

PRECIPITAÇÃO
 

Eu quero sempre mais que o tempo permite e essa gula me paralisa e só aumenta meu querer tornado impossível. Há contas por fazer, mas na cama os lençóis estão em desalinho e, ansiosas, as panelas esperam no fogão. Aberto, o notebook lembra a necessária revisão de um livro – prazo ajustado com a editora a se esgotar –enquanto outro enredo se esboça no etéreo espaço do pensamento. Amigos agendam festas e reuniões e há problemas a serem resolvidos em Bancos, consultórios médicos,

visitas prometidas e desejadas perpetuamente adiadas. Quase nenhum espaço para o sono, para o sonho e para a necessária contemplação de quem nasceu para monja e se vê arrastada, arrasada pelo roldão dos dias. Seriados pedem continuidade e se confundem com solicitações de palestras, com orações sem profundidade, que me frustram, meu espírito sempre a desejar alturas infinitas e inexoravelmente preso a este corpo limitado, comprometido, doente onde o amor é, ainda, ânsia, dor, espera, fé, caminho e descaminho. Eu nunca quero menos que tudo e há montanhas azuis de distância a serem, enfim, palmilhadas e um oceano inteiro e aldeias e veredas a serem conquistados. É muito para uma manhã e lavar os cabelos surge como possibilidade mais próxima. A Lhasa que me ama olha-me com olhos doces e de repente tudo parece menos complicado do que é, como se ainda me fosse permitida a serenidade de quem mergulha num livro e se esquece – por não ser preciso – de voltar. Em incontáveis cadernetas e avulsos papéis sigo a anotar as cores dos dias e minhas lágrimas ficam entre as palavras confusas que, consultadas mais tarde, talvez não signifiquem. Sigo a estrela que, mal chegada a noite, se pronuncia. Há cantos confusos pelos cantos e não sei se outros estão a ouvi-los ou se só ecoam em mim. O luar abre um trilho na noite e as cidades poderiam apagar suas luzes e estariam ainda iluminadas… Há um vago perfume de erva-doce no ar, mas não está na noite nem nesta manhã que com ela se confunde: vem de anos de esquecimento e memória e por um leve momento uno ontem e hoje. Há muito por fazer e o tempo escoa, lembra-me a orquídea que cai. É preciso, afinal, flertar com o dia, frente a frente com ele, enfrentá-lo e… seguir.

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Beijo&Carinho,

 

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