A DIFERENÇA NADA SUTIL ENTRE ERÓTICO E PORNOGRÁFICO

A DIFERENÇA NADA SUTIL ENTRE ERÓTICO E PORNOGRÁFICO
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Segundo a lição de Georges Bataille (1980), há entre os seres “um abismo, uma descontinuidade” em razão de sermos todos diferentes uns dos outros. Gerado num momento de fusão, de completude entre dois seres, o nascimento confere ao novo ser sua marca de diferença, isolamento e descontinuidade (ou incompletude), razão para que ao longo de sua vida procure alcançar o sentimento da continuidade perdida.

Desse modo, de acordo com o escritor francês, a essência da paixão – que leva os seres a se fundirem – é a busca pela perdida completude e o erotismo é a manifestação dessa busca.

No soneto “Passeio ao Campo”, da portuguesa Florbela Espanca, a voz feminina que se eleva dos versos convida um interlocutor (“amor”, “amante”, “amigo”) para o passeio referido no título. Passear pelo campo, todavia, se revelará a oportunidade para o encontro erótico que pretende. Veja:

Na primeira estrofe, ao apresentar sua juventude e disposição, o eu-lírico (a voz feminina que fala no poema) começa a tentativa de sedução do amado, convidando-o a colher “a hora que passa”, no claro sentido de apelo ao aproveitamento do dia. Além disso, sugere que a hora será devidamente aproveitada se colhida ao seu lado (“bebe-a comigo”) e mesmo dentro de si (“bebe-a dentro de mim”).

A segunda quadra é utilizada para fazer um levantamento dos atributos físicos da mulher que convida o amado, de forma a atraí-lo para si. Após referir-se à sua cintura (“esbelta e fina”), ao bronzeado de sua pele (“pele doirada”) e à beleza de suas mãos – dignas de figurarem num quadro da renascença italiana (“frágeis mãos de madona florentina”) – reforça o apelo que já caracterizara a estrofe anterior: “– Vamos correr e rir por entre o trigo! –”.

A descrição da exuberante natureza, na estrofe seguinte, funciona como uma confirmação do convite já feito, pois a sua fertilidade (os montes estão floridos, maduros os trigais e as fontes cintilam) parece lembrar que o tempo é propício ao amor.

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O convite erótico se torna ainda mais explícito na estrofe final do soneto com a sugestão do entardecer e a proposta de fusão das “duas sombras” num só astro – metáfora reveladora do desejo de intimidade sentido pela enunciadora dos versos.

Apesar da brevidade da leitura aqui apresentada, é possível, aproveitando a lição de Bataille, afirmar que o soneto de Florbela é um legítimo representante da literatura erótica, pois nele o eu-lírico executa diversos movimentos em direção ao outro, numa nítida busca pela completude.

Tal afirmação pode chocar quem considera que o erótico se manifesta de forma menos delicada que nos versos da poetisa portuguesa. Entretanto, insisto, isso é erotismo. No erótico o leitor acompanha os movimentos dos amantes (aqueles que se amam) em direção um ao outro para se fundirem e tentarem se completar. No pornográfico, por outro lado, o leitor é levado a experimentar as mesmas sensações vividas pelos seres ficcionais, a se inflamar com elas e a sentir o desejo e/ou a excitação indicados no texto.

A diferença não é nada sutil, mas ainda assim a confusão entre um conceito e outro costuma ser enorme, não é verdade?

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Beijo&Carinho,

 

 

 

Referências:

BATAILLE, Georges. O erotismo. Lisboa: Moraes, 1980.

A imagem em destaque é um detalhe da famosa tela “O beijo”, do pintor simbolista austríaco, Gustav Klimt. A outra imagem, “Mulher no campo”, é de autoria do artista plástico Márcio Camargo. Mais detalhes, aqui.

Sobre erotismo falei aqui, aqui e aqui.

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