CASAS, PORÕES, LIVROS E OBJETOS INÚTEIS

CASAS, PORÕES, LIVROS E OBJETOS INÚTEIS
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Já disse aqui que embora ame viajar as viagens devem ser curtas, pois sinto imensa saudade de casa. Acho maravilhoso ter ao alcance da mão ou do olhar as coisas conhecidas e amadas.
Não é interessante como você vai reunindo objetos ao longo da vida e de repente eles fazem sentido juntos? É esse sentido que me faz falta quando estou longe.
Eu era menina quando o vovô Dito fez uma viagem aos Estados Unidos e voltou cheio de presentes. Ganhei um reloginho lindo em que o mostrador é um passarinho azul que piscava a cada segundo. Ele deixou de funcionar com o tempo, perdeu a pulseira azul como o pássaro, mas está guardado em minha gavetinha de relógios. Hoje em dia não uso mais relógio algum. Dessa mala de presentes do meu avô saíram calças jeans – quando o jeans aqui apenas se apresentava – pulseiras lindas (minha mãe ainda tem a dela), bobs, maquiagem, casacos de inverno e até alguma joia. Não sei quem ficou com o quê, nem isso importa. Sei que entre os presentes apareceu um bonequinho inútil, cabeçudo e simpático, nariz grande e redondo que eu adorava morder quando me deitava na cama dos meus avós. Acho que ninguém quis o coitadinho, apesar de seu enorme sorriso, pois ele ficou por anos no criado-mudo do meu avô. Sob seus pés a inscrição: “I WUV YOU”.
Há poucos anos meu tio caçula fez uma limpeza no porão da casa da minha avó e entre as tralhas que selecionou para o lixeiro eu encontrei o bonequinho e resgatei-o do destino que o aguardava. Já comentei meu gosto por objetos inúteis, que existem apenas pela gratuidade do prazer que nos dão. Esse bonequinho é um desses objetos. Hoje mora comigo, em minha casa, num nicho de uma estante em minha biblioteca, entre livros queridos, e é uma parte das coisas que possuo que me dão a sensação impagável de me sentir em casa.
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Esse porão que meu tio limpou é o porão onde brinquei muitas vezes na infância, pois a casa em que eu morava tinha ligação com o quintal dos meus avós. Era um porão cheio de labirintos (certamente ainda é, mas hoje já não me arrisco a entrar lá) estreitos, nos quais caminhávamos nos arrastando e passávamos de um cômodo para outro. A Zuleica, minha prima, comentando um post meu, disse lembrar-se das brincadeiras no porão “meio tenebroso”. De fato era assim, pois o chão era de terra batida e o que lá se guardava – garrafas, por exemplo – em breve estava coberto por uma nuvem de pó. Brincávamos, minhas primas, meu irmão e eu, de nos esconder nesses labirintos e só quem fosse muito corajoso conseguia encontrar o outro.
Às vezes minhas incursões por esse território eram solitárias e eu encontrava gibis de outros tempos e até alguns livros que hoje estão no meu acervo. Meu céu interior, de J. G. de Araújo Jorge, cujos poemas marcaram tanto minha adolescência, foi ali encontrado, abandonado que fora pela minha tia Nancy, que na altura cursava Letras e começava a entender o que faz uma obra mais literária que a outra. Por conselho dela abandonei o J. G. e passei a ler Fernando Pessoa. Nunca mais parei de ler o poeta português, mas nunca esqueci a emoção adolescente de ler os versos apaixonados do J. G.
A escada que desce da porta da cozinha da minha avó em direção ao quintal – cheio de hortelã – ao tanque, à garagem e, finalmente, ao porão, é hoje aos meus olhos uma escadinha bastante estreita, mas era larga e muita alta nos meus tempos de menina. Incrível que essa mudança tenha acontecido sem que a escada sofresse a menor alteração ao longo dos anos!
Ontem fiz uma visita breve à vovó Ninha – tomei café e comi um pudim de pão delicioso, com passas, que ela acabara de tirar do forno. Ela tem 93 anos e ainda se anima a fazer deliciosos pudins de pão! E não só: é vaidosa e adora roupas novas, passeios, convites para festas. Acho que possui o espírito mais jovem da família.
Entrei em minha casa ao final da tarde com desejo de falar dela aqui, além de mostrar a casa em que ela vive – a mesma da minha infância, com o mesmo porão.
O mercado imobiliário machadense está, ao meu ver, a valorizar acima do que realmente valem os terrenos e as construções da cidade. Gosto disso, pois se um dia resolver sair daqui conseguirei um belo valor pela minha “torre” (que é como chamo a minha casa por causa dos seus três andares). A casa da vovó Ninha deve valer mais que a minha, apesar de ser uma casa antiga, pois está no centro da cidade onde não existem mais possibilidades de expansão a não ser para cima. É bom saber, no entanto, que essas cogitações não nos interessam em nada enquanto tivermos o sorriso dela à janela, como a minha filha flagrou nesta foto:
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Esta é a casa em que passei grande parte da minha infância:
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Esta cor é recente nas paredes. Durante toda a minha infância ela foi verde e minha mãe capturou, numa tela, o tom exato do qual nos lembramos:
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Nara Neves
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Esta tela ocupa a parede principal da minha biblioteca, aquela que fica em frente à porta de entrada. Minha mãe pintou a pedido meu. Eu amo casas, principalmente aquelas em que fui feliz. Abaixo dela fica uma estante baixa, de vidro, onde guardo os livros de poesia. Meu céu interior, do J. G. de Araújo Jorge está lá – com uma capa que eu mesma fiz, pois quando o encontrei no porão a capa original já havia se perdido – a Obra poética, do Fernando Pessoa também. Até onde sei, convivem em harmonia nesse mesmo espaço.
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Beijo&Carinho,
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Crédito da imagem em destaque, aqui.
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27 thoughts on “CASAS, PORÕES, LIVROS E OBJETOS INÚTEIS”

  • Olá, Priscilla, que bom que descobriu meu blog e gostou dele assim de cara! Agradeço os elogios ao meu texto – nossa, fico tão vaidosa! – e te convido a voltar mais vezes, tá combinado? Agora vou conhecer o SEU blog e saber sobre esse sorteio… delícia!!!
    Abraço!

  • Gostei muito do bonequinho (pensar que ía pro lixo… que loucura!) Gostei das aventuras dos primos no porao 🙂 E o que você fala de Fernando Pessoa, me fez lembrar da visita que meu filho e eu fizemos ao Museo de Língua Portuguesa em Sao Paulo… Ficamos horas lendo as frases projetadas nas colunas e paredes… Mas o que mais gostei foi da sua avó. Lembrei da minha, que sendo húngara, falava uma mistura de húngaro, alemao, português e espanhol, fazia dozes europeus no natal e conhecia todo mundo no bairro… Que saudades dela 🙂

  • Oi Ju,

    Amamos poder ver a foto da Vó Ninha!!! me lembro de ter tantas fotos encostadas nesse muro ainda quando era bem pequenina. Confesso que sou bem saudosista da minha infância, família grande e reunida, conversas à mesa, boas histórias, o tempo passou mas ainda me lembro de cada detalhe daquela casa tão cheia de vida, de lembranças, posso fechar os olhos e voltar naquela época. Obrigada por nos lembrar o quanto somos abençoados com uma família de tanto amor e com tantas memórias.
    bjos

  • Sempre digo que tudo o que fizemos quando crianças, contrói muito do que nos tornamos como adutos!
    Amo recodações, nos enche ainda mais de felicidade!
    E nos lembram de ser pessoas bem alegres, simples e doces, como a infancia era!

    Beijos,
    uma semana cheia de afeto!

  • Jussara querida
    Que delícia que é ler seus textos… remetem a tanta coisa boa…
    Cada história, cada detalhe, cada foto se harmonizam tão perfeitamente que a gente lê e não cansa… eu adoro textos assim, longos, mas curtos, deu para entender ?? srrsrs

    Bjus 1000 querida

  • Edelweiss,então vc esteve no Museu da Língua Portuguesa, em Sâo Paulo? A exposição com as frases do Fernando Pessoa projetadas nas paredes não faz muito tempo não, né? Uns 2 anos… Qdo eu estive lá a exposição era sobre Clarice Lispector. Gostei muito.
    Obrigada por se interessar pelos meus textos. Fico muito feliz! Gostei de saber de sua avó. Húngara! Nossa… que bacana! E que doces deliciosos deviam ser os que ela fazia, heim? Humm… fiquei com vontade! =(
    Abraços!

  • Oi, Flá,
    É verdade, foram muitas fotos em frente aquela janela, desde eu muito menina. Aquela casa tem história(s). Tenho muitas saudades daqueles natais em que vcs vinham do Rio, o Vovô Dito animado por receber todo mundo… Sim… o tempo passou, mas vc tem razão, somos abençoados por termos uma família cheia de amor e memórias.
    Abraços e saudades!

  • Eu tenho um defeito, Peepa, que sei bem que tenho. Uma dificuldade pra começar a escrever! Parece que não vai sair nada! Mas depois que começo o difícil é parar. E aqui no blog sei que os textos não devem ser mto grandes, senão ninguém se anima… Entendi perfeitamente o que vc disse sobre gostar de textos longos, mas curtos… que tenham o espaço ideal para caber beleza e remeter a coisas boas, não é mesmo? Que bom que gosta dos meus textos! Eu amo as suas receitas! rs
    Abraço!

  • Oi Jussara, é a Vi, é muito bom quando temos lembranças tão boas da nossa infância,eu não tenho muitas lembranças.
    Eu sempre gostei de ler, meu primeiro livro foi Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato.
    Sabe que eu reparei o numero da casa da sua avó, o numero da minha casa usa os mesmos algarismos.
    Sua mãe pinta muito bem, mas gostei da casa da sua avó na cor atual.
    Muitos beijos,Vi

  • Olá Jussara, que delícia que é ler seus escritos… fico encantada com a facilidade e clareza com que vc relata suas histórias, a ponto de nos levar pra dentro delas, como se estivéssemos vivendo toda a situação junto com vc. Quer dizer que a mãe é pintora? E que bela pintora, hein?
    Qto a vó, que é um fofa, quem sabe se fosse amiga da mamãe daria uma animada pra ela fazer alguma coisa. Que máximo ela ainda executar um pudim, minha mãe só mantém a vaidade, o restante ela perdeu, nem cafezinho ela se anima a fazer, e era uma excelente quituteira.. mas se fechou para tudo isso…bjs.

  • Oi, Vi, que bom que veio dar uma espiada no minasdemim e que bom que gosta de ler… sinal que vai voltar mais vezes… rsrs. Vc diz que seu primeiro livro foi "Reinações de Narizinho"… nossa! você começou nuito bem! Nonteiro Lobato – especialmente na sua faceta para crianças – é tudo de melhor! Não é de admirar que, tendo começado por ele, vc continue a ser boa leitora.
    Olha a coincidência dos algarimos nos números das casas! Não é impressionante? Obrigada pelo carinho, pelo elogio à pintura da minha mãe… Minha avó vai adorar saber que vc gostou da cor atual da casa dela!… Abração!

  • Oi, Anita, que bom que veio e que bom que gosta dos meus escritos! Fico tão feliz! Feliz também por vc ter gostado da pintura da minha mãe. Qualquer dia posto um quadro floral… as flores que ela faz tem movimento… são lindas! Sobre a sua mãe só manter a vaidade… é bom pensar que ela já fez muitos cafezinhos e cansou disso, mas a vaidade é o modo de ela dizer que dela mesma ela não se cansou! Abraço!

  • Com essa sua descrição tão viva de seus tempos de menina, revivi Machado em que morei tantos anos… Claro que, ficando no CIC e quase nem saindo muito do colégio, minhas lembranças são limitadas; mas acompanhei-a, agora, e fui vendo-a com seus primos e amigos… E a foto de sua avó, transmitindo aquela tranquilidade das pessoas que sabem viver, de cuja fisionomia me lembrei… Obrigada, Jussara por colocar seus dons 'a nosso dispor', dando-nos o presente de sua espontaneidade ao escrever. Pilar

  • "Sor" Pilar, confesso-lhe que não imaginava, ao criar o blog, que ele me daria a alegria que tem dado – por proporcionar aos que me lêem e a mim mesma a alegria de recordar, de trazer de volta ao coração aquilo que compõe a essência do que somos, do que sou. Fico sempre muito feliz com sua leitura atenta – é seu o comentário sobre as Galinhas d'Angola? Não está assinado, mas penso que é seu justamente pelo cuidado da leitura – e alegrou-me muito saber que se lembrou da minha avó. No dia em que estive em casa dela a comer pudim de pão e passas, falei com ela sobre a sra. e sobre o abraço que havia lhe mandado. Ela ficou toda sorrisos e pediu que eu retribuisse. Missão cumprida? Abraço!

  • Que história linda da sua família… adorei!
    A casa, o porão o quadro..
    Linda a foto da sua vózinha na janela
    Hoje quando vou a casa da minha vó, adoro fuçar nas quinquilharias que ela guarda rsrs

    beijoo

  • Que nostalgia boa! Nós, os bisnetos da vó Ninha, também brincamos bastante nesse porão cheio de labirintos e terra batida, apesar do medo de morcegos! O chão de madeira da casa, o cheiro dos móveis antigos e aquela poltrona da sala cheia de fotografias estão bem guardados aqui em mim. Cenário da fase mais linda da minha vida. Saudades!

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